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Lindolfo Lenhardt,
meu avô materno, havia sido músico em sua terra natal. Trompetista de banda,
artista de bailes, festas e quermesses. Com suas performances, economizou
dinheiro suficiente para comprar uma colônia de terras no Distrito de Caravaggio, a
seis quilômetros da cidade de Três de Maio. Terras que quase nada valiam,
recobertas por florestas infestadas de animais e formigueiros.
Quase ao mesmo
tempo, meu avô paterno, Bernardo Augusto Kiefer, que também fora músico em
Cachoeira do Sul, e plantador de fumo, comprou um salão de bailes no Distrito da Consolata, a quatro
quilômetros de distância das terras da família de minha mãe, e um pouco mais
distante da cidade de Três de Maio. Anos mais tarde, em 1950, praticamente
faliu, porque os católicos foram proibidos de freqüentar os salões de baile por
ordem do Papa. Vendeu, então, a casa de diversões e se tornou proprietário de
uma pequena olaria, que existe ainda hoje e que me forneceu o barro para a
construção de Valsa para Bruno Stein.
"Tijolo e pão o
mundo sempre irá precisar", ele dizia, ensinando-me as primeiras noções de
sobrevivência e de comércio.
De um lado, herdei
notas de flauta e de trompete; e de outro, acordes de violão e de violino. Meu
pai e minha mãe foram cantores de rádio, antes de meu nascimento. Só não me
tornei músico porque a fumaça de cigarro nos salões de baile, única alternativa
profissional para um músico em minha terra natal, me impediu. Sou alérgico, reativo a fumaças,
pós e polens. Ainda hoje, para serenar o espírito, ou para entreter as filhas, dedilho
um violão e canto. Sofia é boa pianista e boa desenhista. Um dos significados
de seu nome é o de “fazer bem com as mãos”. Anna, que ainda não fala e nem
caminha, já balança o corpo ao ouvir alguma melodia. Eu e ela passamos horas
vendo e ouvindo clipes musicais. Mas, ao lutar com as palavras, tento transferir
para a linguagem escrita o timbre, o ritmo e a harmonia das notas musicais bem
dispostas no pentagrama. Faço e refaço os meus textos tantas vezes quantas
forem necessárias para conseguir a fluidez e a falsa simplicidade do solista.
Sei que ninguém mais se importa com isso, mas escrevo, na verdade, para mim
mesmo; sei que o texto medíocre e superficial é o que vende mais, o que mais
agrada às multidões de bárbaros, mas essa é a minha última – e hoje única –
trincheira. Procurei sempre transferir aos meus alunos essa concepção radical
de arte literária.
Meu avô Lindolfo
era “católico, apostólico e romano”, como gostava de dizer. E meu avô Bernardo,
era de “confissão luterana”, ele também gostava de dizer. A igreja do primeiro
era enorme, deslumbrante, e a do segundo, pequena, e de uma simplicidade
constrangedora. Levei muito tempo para compreender as grandes diferenças entre
as duas famílias que me constituíram. Meu pai, protestante, teve apenas um
irmão e uma irmã. Minha mãe, católica, teve nove irmãos e três irmãs. Por muito
tempo, imaginei que Regina, a mãe de meu pai, fosse pouco fértil. Depois de ler
Max Weber, na adolescência, e de ter começado a compreender a ética protestante
e o espírito capitalista, perguntei-lhe como mantivera tão reduzida prole. “Com
o chá dos bugres”, respondeu-me, com a sinceridade seca que também me persegue. Morreu recentemente, com mais de cem anos.
Vivi a infância
mais perto da família católica, e a adolescência mais perto da família
protestante. As diferenças me assombravam e nunca consegui fazer a síntese entre
as duas visões de mundo. Ainda hoje, uma parte de mim se encanta com a missa do
galo e sua pompa; a outra, não se submete a nenhuma autoridade, não aceita o
fausto. Uma parte acumula; a outra, culpada, inventa filantropia. O cético, em
mim, não desdenha da fé; o crente não prega. E ambos observam com perplexidade a guerra entre ciência e religião. Ao encontrar a Fonte dessas duas visões de mundo,
descansei. Agora, posso afirmar com serenidade aos meus alunos de Kabbalah: “Não
acreditem em nenhuma das minhas palavras. Façam os exercícios e experimentem vocês
mesmos”. Kabbalah, para quem não sabe, é a Ciência do Recebimento.
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