quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Suor no Rosto (3)


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Lindolfo Lenhardt, meu avô materno, havia sido músico em sua terra natal. Trompetista de banda, artista de bailes, festas e quermesses. Com suas performances, economizou dinheiro suficiente para comprar uma colônia de terras no Distrito de Caravaggio, a seis quilômetros da cidade de Três de Maio. Terras que quase nada valiam, recobertas por florestas infestadas de animais e formigueiros.



Quase ao mesmo tempo, meu avô paterno, Bernardo Augusto Kiefer, que também fora músico em Cachoeira do Sul, e plantador de fumo, comprou um salão de bailes no Distrito da Consolata, a quatro quilômetros de distância das terras da família de minha mãe, e um pouco mais distante da cidade de Três de Maio. Anos mais tarde, em 1950, praticamente faliu, porque os católicos foram proibidos de freqüentar os salões de baile por ordem do Papa. Vendeu, então, a casa de diversões e se tornou proprietário de uma pequena olaria, que existe ainda hoje e que me forneceu o barro para a construção de Valsa para Bruno Stein.



"Tijolo e pão o mundo sempre irá precisar", ele dizia, ensinando-me as primeiras noções de sobrevivência e de comércio.



De um lado, herdei notas de flauta e de trompete; e de outro, acordes de violão e de violino. Meu pai e minha mãe foram cantores de rádio, antes de meu nascimento. Só não me tornei músico porque a fumaça de cigarro nos salões de baile, única alternativa profissional para um músico em minha terra natal, me impediu. Sou alérgico, reativo a fumaças, pós e polens. Ainda hoje, para serenar o espírito, ou para entreter as filhas, dedilho um violão e canto. Sofia é boa pianista e boa desenhista. Um dos significados de seu nome é o de “fazer bem com as mãos”. Anna, que ainda não fala e nem caminha, já balança o corpo ao ouvir alguma melodia. Eu e ela passamos horas vendo e ouvindo clipes musicais. Mas, ao lutar com as palavras, tento transferir para a linguagem escrita o timbre, o ritmo e a harmonia das notas musicais bem dispostas no pentagrama. Faço e refaço os meus textos tantas vezes quantas forem necessárias para conseguir a fluidez e a falsa simplicidade do solista. Sei que ninguém mais se importa com isso, mas escrevo, na verdade, para mim mesmo; sei que o texto medíocre e superficial é o que vende mais, o que mais agrada às multidões de bárbaros, mas essa é a minha última – e hoje única – trincheira. Procurei sempre transferir aos meus alunos essa concepção radical de arte literária.  



Meu avô Lindolfo era “católico, apostólico e romano”, como gostava de dizer. E meu avô Bernardo, era de “confissão luterana”, ele também gostava de dizer. A igreja do primeiro era enorme, deslumbrante, e a do segundo, pequena, e de uma simplicidade constrangedora. Levei muito tempo para compreender as grandes diferenças entre as duas famílias que me constituíram. Meu pai, protestante, teve apenas um irmão e uma irmã. Minha mãe, católica, teve nove irmãos e três irmãs. Por muito tempo, imaginei que Regina, a mãe de meu pai, fosse pouco fértil. Depois de ler Max Weber, na adolescência, e de ter começado a compreender a ética protestante e o espírito capitalista, perguntei-lhe como mantivera tão reduzida prole. “Com o chá dos bugres”, respondeu-me, com a sinceridade seca que também me persegue. Morreu recentemente, com mais de cem anos.



Vivi a infância mais perto da família católica, e a adolescência mais perto da família protestante. As diferenças me assombravam e nunca consegui fazer a síntese entre as duas visões de mundo. Ainda hoje, uma parte de mim se encanta com a missa do galo e sua pompa; a outra, não se submete a nenhuma autoridade, não aceita o fausto. Uma parte acumula; a outra, culpada, inventa filantropia. O cético, em mim, não desdenha da fé; o crente não prega. E ambos observam com perplexidade a guerra entre ciência e religião. Ao encontrar a Fonte dessas duas visões de mundo, descansei. Agora, posso afirmar com serenidade aos meus alunos de Kabbalah: “Não acreditem em nenhuma das minhas palavras. Façam os exercícios e experimentem vocês mesmos”. Kabbalah, para quem não sabe, é a Ciência do Recebimento. 

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