sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Suor no Rosto (4)



4


Fecho os olhos por um instante e sinto o ar rarefeito e gelado da despensa da velha casa da colina, casa que Vilma, minha avó materna, tanto amou, e da qual só se afastou para morrer. É um cheiro quase doce, a emergir do edifício imenso da recordação, uma mistura complexa, acidez de vinagre, gordura animal, linóleo, cravo e manjericão. Às vezes, o cheiro de um lombo de porco assado em alguma casa da vizinhança me transporta ao passado e me revejo, na companhia de meus tios, roubando pedaços de carne das latas de banha, porções que comíamos frias, e escondidos. Vilma, à noite, na hora do banho de gamela, com seu faro de perdigueira, percebia o que tínhamos feito, mas não nos denunciava ao patriarca.



Antes do advento da luz elétrica às terras do interior, a lata de banha substituía com eficiência a geladeira. Nela se colocavam nacos de carne pré-cozida, que ali podiam ficar imersas na gordura, sem risco de degradação, por muitos meses. Um costume milenar, que foi usado pelos povos mais antigos da terra, e que perdurou até a década de setenta do século passado em minha região, quando os ventos da modernização urbano-industrial varreram o velho mundo imigrante. Ventos que varreram também, e sem piedade, as casas de minha infância.



A cozinha colonial, de origem alemã, constituía-se, àquele tempo, basicamente, de feijão, arroz, carne suína e seus derivados, frutas e verduras. Nas festas de casamento, e na família de minha mãe foram muitas, havia também carne de rês, assada ao modo antigo, em espetos de pessegueiro ou açoita-cavalo sobre braseiros em terra cavada. Por conta dessa dieta ampla e consistente, os colonos do Alto Uruguai não conheciam os malefícios da desnutrição, e a taxa de mortalidade infantil era baixíssima. Como se sabe, a carne de porco cozida – frita ou assada –, a banha e o torresmo, as morcilhas brancas e as morcilhas de sangue, as copas, os salames e as salsichas são alimentos altamente calóricos, mas nem por isso havia obesidade na família Lenhardt. Em primeiro lugar, porque só se comia o necessário; e, em segundo, porque o trabalho braçal nas lavouras de milho e soja consumia qualquer excesso energético.



Vilma, apesar de ter parido treze vezes, e longe de médicos e hospitais, jamais perdeu um filho, nem mesmo Paulo, o caçula, que teve a testa perfurada por um cartucho de espingarda, numa tarde de domingo. Vi esse tio, que eu carregara muitas vezes no colo, cair ao meu lado feito um galho de árvore, estatelado, duro, como que morto, num dia em que eu visitava meus avôs. Mais adiante, conto melhor essa história.


São tantas as casas que me visitam em meus devaneios memorialísticos, a casa da tapera, a casa da colina, a casa da cadela, a casa velha sem reboco, a casa de salpique verde, a casa da ponte, a casa da tempestade, a casa da bicicleta quebrada, a casa do armazém e a casa do velório, mas da casa em que nasci nada recordo, e dela não sobraram mais que os vestígios de uma calçadinha de tijolos, localizada próximo do eucalipto sob o qual se sentava, todas as tardes, o meu avô Bernardo, a sofrer, interminavelmente, de um reumatismo que eu herdaria, e a ensinar-me, em silêncio, que as coisas são o que as coisas querem ser. Pelo deslocamento das nuvens, sua direção e velocidade, ele vaticinava os aguaceiros e os temporais, com três dias de antecedência. Muitos anos depois, sentado eu às margens do Rio Iowa, no meio oeste norte-americano, ouvi de um índio, em inglês, o que meu avô dizia em português: Don´t push the river”. Eu queria, naquelas intermináveis tardes yankees, que o tempo passasse mais depressa, para que eu pudesse regressar logo a Porto Alegre e a minha gente, mas o tempo só passa depressa quando se está feliz. E era quando devia ser lento, espesso, paquidérmico. Enfim, as coisas são o que as coisas querem ser, não adianta empurrar o rio. Esta máxima, falsamente conformista, eu a ouvi também de um grande professor de estética, quando ainda se estudava isso nas faculdades de letras, o Odone Quadros. O velho mestre, herdeiro da antiga tradição ética, não se furtava de declinar a fonte de seu idealismo fatalista: Luigi Brentano. Mas cumpramos aqui o recomendado pelo escravo frígio, no palíndromo dos palíndromos, que diz, em latim: Sator arepo tenet opera rotas. O lavrador mantém o arado no seu curso. E o colono em mim, que não morreu, procura manter certa linearidade no relato, mas aplicando aqui a fórmula de Fibunacci: retorno sempre ao mesmo lugar, mas acima, numa espiral ascendente que se perde no Ayin Sof, Sem Fim, ou mais vulgarmente conhecido como Infinito. Retornemos, pois, à verga de minha infância, ao caudal mais fundo e flexível, às águas mais densas.



O desejo de ascensão social fez de meu pai um verdadeiro cigano, a morar em muitos lugares em busca de uma vida melhor. Talvez venha daí a sensação que tenho de que não passo de visita, de que estou sempre de passagem. Trago, impressa em meus genes, a síndrome do imigrante: a eterna esperança de encontrar a terra prometida (que não se alcança nunca) e a saudade irredimível da terra natal (que nunca se teve). Sei que esse estar-entre, esse ser-em-viagem, essa angústia do deslocamento só se pacifica com a morte. Por que na morte, ou na Luz, como alguns preferem chamar, o tempo, o espaço e o movimento deixam de existir, e tudo se transforma numa cálida, aprazível e infinita Presença, mas uma Presença Absoluta, que talvez fosse melhor denominar de consciência. Ou alma. O cognato alma vem de Animus, Anima, em latim, e que significa “o que anima”. Na Kabbalah, alma é uma estrutura complexa, a que chamamos de Naranchay, que é um acrônimo, composto de Nefesh, Ruach, Neshamá, Chayá e Yechidá. Mas voltemos à palavra em nosso idioma, para não complicar demais as coisas. Em hebraico, alma seria nefesh, força vital. Em sânscrito, atman. E em grego, psykhé. Que também significa borboleta. Os filósofos-cabalistas gregos foram grandes poetas. É de uma delicadeza extraordinária e de uma precisão cirúrgica chamar o “Ohr em nós” de borboleta. Linda, frágil e inquieta. E capaz de transformações estupendas. A pesada e lenta lagarta se transforma em leve e ágil borboleta. Na morte, somos capazes de entender o que Moisés ouviu da Sarça Ardente: Eyeh Asher Eyeh. Sou o que sou.



 O ser-em-viagem em mim gosta de quartos de hotel, de pensões, de hospedarias de estrada porque sei que eles não me apegarei e que deles recordarei apenas instantes, acrescentados já à grande caravana de pousadas em meu caminho. Das casas oníricas, no entanto, casas compostas de ilusões e sonhos, de cheiros e sabores, chegam-me fluxos indescritíveis de sensações e de lembranças, e é nelas, nessas casas de vento, que encontro a paz da verdadeira intimidade. Esse é o meu espaço, onde posso enrodilhar-me sobre mim mesmo e descansar.



Contar clareia, disse o personagem principal de meu romance Quem faz gemer a terra. Talvez, e aos poucos, a luz do verbo ilumine os cantos escuros de meu passado. Das paredes que ouviram meu primeiro grito, tenho apenas informações de terceiros, especialmente de minha mãe. Não restaram em mim sequer fragmentos desses instantes inaugurais da existência. Sei que estão gravados em algum lugar do cérebro, formaram sinapses, mas jazem soterrados agora por camadas e mais camadas de entulhos.



A casa primeira e mais sólida, porque mais simbólica, e que mergulha nas profundezas de meu psiquismo, ou da borboleta que se agita em mim, é a casa da tapera, assentada sobre quatro sólidos cepos de guajuvira. Se eu quisesse construir uma alegoria simples e maniqueísta poderia dizer que esses pares de troncos decepados eram Lindolfo e Vilma, do lado materno, e Bernardo e Regina, do paterno. O Kiefer que trago no nome é uma espécie de pinheiro selvagem, madeira com que se fazem móveis na Alemanha. Mas Kiefer também significa maxilar. Assim, me apraz imaginar que sou uma estranha mistura de osso e tronco, rijo, rígido, difícil de vergar, mas talhável, se o formão estiver em mãos hábeis e pacientes. Por outro lado, eu próprio fui me marchetando, podei os meus excessos, alisei os meus nós, escondi os veios mais salientes. Ainda hoje, embora mais enfeitado e mais comedido, se agredido ou injustiçado o núcleo de osso e cerne se revela. Dissociaram-se, em mim, o camponês e o professor? Um estava no outro – caroço na fruta? Ou no tronco antigo enxertou-se um ramo exótico, que produziu fruta nova?



Da casa da tapera o que tenho ainda na memória é o potreiro, a mesa de madeira falquejada, o fogão à lenha que nos aquecia nas noites de inverno e, especialmente, a lembrança do som do vento fazendo ranger os taquarais, dias e noites. Rangido triste e comprido, que só findava nas noites paradas, que anunciavam as tempestades.



Para se chegar a essa casa, egresso da cidade, era preciso percorrer, já em terras do meu avô, uma estradinha de chão batido, úmida e fresca, que atravessava uma floresta composta de canjaranas, cedros, louros e ipês, dentre as tantas árvores nativas de meu torreão natal. Nessa mata sobreviviam ainda gatos-do-mato, jaguatiricas, bichos-preguiça e tucanos, e uma infinidade de outras aves e animais de pequeno porte, que seriam extintos depois, com o advento das lavouras de soja. Com freqüência, vínhamos de Três de Maio, eu, minha mãe e Lola, minha irmã, para passarmos os finais de semana com meus avôs. Meu pai, que mantinha relações difíceis com os familiares de mamãe, não nos levava até a casa da tapera. Deixava-nos a uns dois ou três quilômetros de distância, no estradão, e partia em seu reluzente Studebacker, automóvel que emprestei para o pai de Circe Brechen, em meu romance Os ossos da noiva e que ele enterrou, num duplo delito, incriminando o negro da história, e roubando-me uma das imagens mais poderosas de minha infância. Aquele automóvel inglês de muitos cavalos ainda há de passear, garboso, por outra história minha, se algum dia eu voltar a fazer ficção. E o que estou fazendo aqui? Ficção, do latim, fingus, finx, fingere. O passado está morto. Na PUC, onde ensinei Escrita Criativa, lembrava sempre aos meus alunos que um dos sentidos da palavra ficção é “pentear os cabelos”, “afeitar”. O passado está morto e estendido no chão. Esgrouvinhado, amarrotado, amassado. E descabelado. Agora, faço o que fazem os preparadores de cadáveres das funerárias, maquiagem.



Percorríamos, nós três, minha mãe, minha irmã e eu, o trajeto a pé, cantando, contando histórias, para espantar o medo. Minha mãe era, e ainda é, uma mulher alta, bonita e determinada. Nas fotos com as amigas de juventude, está sempre sentada, para não sobressair-se demais, para não ofendê-las com a desproporção. Eram tempos de delicadezas sutis, de gestos solidários e dignos. Como as canafístulas e as canjaranas, esses atos de civilidade sumiram do mapa, mas podem ser replantados, basta que o desejemos. Nós somos o que é a nossa sociedade e a nossa cultura, e não há escusas. Não são os outros, os mal-educados. Não são os outros, os corruptos. Não são os outros, os violentos. Somos nós, nós mesmos.



Daquela floresta tirei o nome para a minha cidade-símbolo, a Pau-d´Arco de tantos livros, de tantas misérias e grandezas. Mas Pau-d´Arco é apenas isso, um dos nomes do ipê-roxo. E, na minha obra, o nome é uma homenagem às árvores de minha infância, que foram substituídas por uma leguminosa rasteira, mas lucrativa, a soja, que hoje faz a alegria dos exportadores.



As paredes da casa da tapera eram de pinho. Com o passar dos anos, os nós das tábuas afrouxavam e caíam, deixando buracos. No inverno, esses vazios eram tapados com chumaços de pano ou de palha de milho, mas, no verão, eram reabertos para permitir a circulação de ar. Nas casas dos colonos pobres, a lata de banha substituía a geladeira; as labaredas no fogão, as telenovelas; e os buracos nas tábuas, o condicionador de ar.



Recordo a casa da tapera já recoberta de um musgo suave, quase uma poeira acinzentada, manchada pela intempérie, mas que havia sido azul, segundo minha mãe, que a pintou aos doze ou treze anos. Não sei como nem por quem foi construída, mas participei de sua destruição, em 1965, quando a família mudou-se para a casa de alvenaria, no alto da colina, às margens do estradão.



Dessa casa da tapera restaram farelos desconexos de memória, súbitas iluminações, temporalidades que se sobrepõem. São sensações vagas, cheiros, texturas, imagens, que se misturam a lembranças de outras casas. A escada de acesso, ao contrário do que eu imaginava, ficava nos fundos, segundo a minha mãe. A porta da frente, por causa do desnível do terreno, não necessitava de degraus, ela me corrigiu. Talvez os cepos de sustentação não fossem quatro, mas três. Talvez apenas dois, já que o próprio barranco podia servir de escora. O teto, na minha lembrança, não tinha forro, e tinha. As vigas expostas que enxergo são de outra residência. Para mim, eram muitos os quartos de dormir, para abrigar tantos filhos. No entanto, havia só quatro: o dos meninos, o das meninas, o do casal e o de hóspedes. Do aparelho de rádio eu me recordo muito bem. Ficava no canto da sala, próximo a uma janela. Os estalidos de extática, secos, que fazia ecoam ainda em meus ouvidos. Imagino, passados tantos anos, o quanto devia ser difícil captar as emissões que vinham de Ijuí e de Cruz Alta, cidades que possuíam torres de transmissão, mas que ficavam a centenas de quilômetros de distância. Agora, ao escrever tudo isso, num insight impressionante, vem-me à memória a figura de meu avô, agastado com um temporal que derrubou a antena que ele colocara na cumeeira do galpão.

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