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Dou-me conta
também que a minha paixão pela língua espanhola vem desse tempo, quando o rádio
de meu avô transmitia os programas da Rádio El Mondo. Estávamos, então,
mais próximos da Argentina que do Brasil. A sonoridade do portenho encanta-me,
como a uma cantiga de ninar. Na década de 80, convivendo nos EUA com
latino-americanos, me causavam espanto as tantas diferenças fonéticas e a
aspereza do falar de outras regiões do continente. Eu não atinava com as causas
profundas, as razões telúricas desse meu estranhamento. Tem razão Fernando
Pessoa ao afirmar que a pátria é a língua. Pátria que construímos nesses
primeiros anos de nossas vidas. Jorge Luis Borges já estava em mim muito antes
que eu o conhecesse a sua literatura.
A palavra pátria, por estas razões que só a
linguagem conhece, me traz à lembrança uma data especial, de terror e pânico, que
vivemos na velha casa da tapera: 29 de
agosto de 1961.
Naquele dia,
depois de passar semanas ao redor do rádio, tentando, em meio à estática, ouvir
os discursos de Leonel Brizola, meu avô não teve dúvidas: ordenou a retirada de
todos os filhos e netos da casa da tapera para esconder-nos no mato.
Em seu delírio,
ele imaginava, assim, proteger-nos dos bombardeios que sofreria o líder
entrincheirado no Palácio Piratini, a quinhentos quilômetros de distância. Eu
devia ter contado essa história ao Osvaldo França Júnior, o escritor mineiro
que se recusou a levantar vôo da base aérea de Canoas, em 1961, o que evitou
que a Legalidade se transformasse numa carnificina. Não contei, e agora não
mais posso contar (ele morreu num acidente estúpido, no interior de Minas
Gerais, de regresso de uma palestra numa escola), porque eu próprio havia
esquecido essa exótica passagem de minha infância, ou porque não a julguei
importante, história que hoje mais me parece saída de um romance de Gabriel
Garcia Marquez do que de meu próprio passado. Neste instante, ao recuperá-la,
concluo que todos os escritores têm histórias familiares fantásticas, mas nem
todos são capazes de transformá-las em narrativas convincentes. Com a história
familiar que me foi dada eu só não seria escritor se não quisesse.
Lindolfo Lenhardt,
pela fisionomia, estatura, magreza e comportamento, poderia ter sido retratado
também por Miguel de Cervantes, ou pintado por Gustave Dorée. Faltou-lhe um
Sancho Pança, é verdade, mas seus devaneios fizeram a alegria e a tristeza da
família de minha mãe por muitos anos.
Aos 95 anos, meu
avô ainda dava muito trabalho à tia Traudi, com quem viveu até morrer, em Três
de Maio, porque queria casar-se com uma vizinha, cinqüenta anos mais jovem, e
viúva também.
“Não repara, teu
avô é meio tico-tico, gosta de ciscar em quintal alheio”, ouço Vilma murmurar.
Fecho os olhos
outra vez e sou inundado não só pelo cheiro da despensa, o agridoce aroma da
colônia, mas também pelo significado da magnífica passagem de Em busca do
tempo perdido, em que Marcel Proust nos diz: “Quando mais nada subsistisse
de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas –
sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes,
mais fiéis – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas,
lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando,
sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
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