segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Suor no Rosto (5)



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Dou-me conta também que a minha paixão pela língua espanhola vem desse tempo, quando o rádio de meu avô transmitia os programas da Rádio El Mondo. Estávamos, então, mais próximos da Argentina que do Brasil. A sonoridade do portenho encanta-me, como a uma cantiga de ninar. Na década de 80, convivendo nos EUA com latino-americanos, me causavam espanto as tantas diferenças fonéticas e a aspereza do falar de outras regiões do continente. Eu não atinava com as causas profundas, as razões telúricas desse meu estranhamento. Tem razão Fernando Pessoa ao afirmar que a pátria é a língua. Pátria que construímos nesses primeiros anos de nossas vidas. Jorge Luis Borges já estava em mim muito antes que eu o conhecesse a sua literatura.



A palavra pátria, por estas razões que só a linguagem conhece, me traz à lembrança uma data especial, de terror e pânico, que vivemos na velha casa da tapera: 29 de agosto de 1961.



Naquele dia, depois de passar semanas ao redor do rádio, tentando, em meio à estática, ouvir os discursos de Leonel Brizola, meu avô não teve dúvidas: ordenou a retirada de todos os filhos e netos da casa da tapera para esconder-nos no mato.



Em seu delírio, ele imaginava, assim, proteger-nos dos bombardeios que sofreria o líder entrincheirado no Palácio Piratini, a quinhentos quilômetros de distância. Eu devia ter contado essa história ao Osvaldo França Júnior, o escritor mineiro que se recusou a levantar vôo da base aérea de Canoas, em 1961, o que evitou que a Legalidade se transformasse numa carnificina. Não contei, e agora não mais posso contar (ele morreu num acidente estúpido, no interior de Minas Gerais, de regresso de uma palestra numa escola), porque eu próprio havia esquecido essa exótica passagem de minha infância, ou porque não a julguei importante, história que hoje mais me parece saída de um romance de Gabriel Garcia Marquez do que de meu próprio passado. Neste instante, ao recuperá-la, concluo que todos os escritores têm histórias familiares fantásticas, mas nem todos são capazes de transformá-las em narrativas convincentes. Com a história familiar que me foi dada eu só não seria escritor se não quisesse.



Lindolfo Lenhardt, pela fisionomia, estatura, magreza e comportamento, poderia ter sido retratado também por Miguel de Cervantes, ou pintado por Gustave Dorée. Faltou-lhe um Sancho Pança, é verdade, mas seus devaneios fizeram a alegria e a tristeza da família de minha mãe por muitos anos.



Aos 95 anos, meu avô ainda dava muito trabalho à tia Traudi, com quem viveu até morrer, em Três de Maio, porque queria casar-se com uma vizinha, cinqüenta anos mais jovem, e viúva também.



“Não repara, teu avô é meio tico-tico, gosta de ciscar em quintal alheio”, ouço Vilma murmurar.



Fecho os olhos outra vez e sou inundado não só pelo cheiro da despensa, o agridoce aroma da colônia, mas também pelo significado da magnífica passagem de Em busca do tempo perdido, em que Marcel Proust nos diz: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando, sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.


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