quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Suor no Rosto (6)




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Às vezes, diante do espelho, ao ajeitar a barba, conformado já com os dentes amarelos, com as pequenas manchas escuras que começam a surgir-me no rosto e nas mãos, indago ao outro, que me fita na superfície fria do mercúrio, como fui capaz de evitar as minas, os alçapões e as armadilhas que me esperavam. A genética e a história, acomodadas em seu determinismo cego, queriam que eu fosse um provinciano irrealizado e ressentido, vendedor de agrotóxicos, apontador de jogo do bicho, bancário ou fotógrafo de batizados e casamentos nos grotões às margens do rio Uruguai, mas eu me recusei a cumprir os augúrios das forças biológicas e sociais. Mais adiante, contarei como fugi do labirinto, sem oráculo e sem fios mágicos, depois de ouvir a notícia da morte de Erico Veríssimo, no meu velho rádio Continental.



No princípio, quando decidi escrever as minhas memórias, uns 10 anos atrás, eu contava o episódio de EQM como se fosse um sonho. Eu tinha uma carreira de homem público (tinha sido Coordenador do Livro e Literatura de Porto Alegre, depois Secretário Municipal de Cultura, depois Sub-Secretário Estadual de Cultura), eu tinha uma carreira de professor e escritor, e senti temor e vergonha de declarar que minha alma (consciência) tinha saído do corpo e encontrado um amigo falecido dezenas de anos antes da minha própria morte. Diante da minha condição de ficcionista eu sabia que não seria levado a sério. Era melhor dizer que tinha sido um sonho. Assim, transformei o episódio no tema de um romance, Dia de matar porco, que foi publicado, mas que não gerou mais do que indiferença. E o que faço agora vai gerar dores de cabeça aos teóricos de literatura, no futuro, quando eles cruzarem as duas histórias. Qual é a verdadeira? O roman à clef ou as memórias romanceadas? Aqui, são evidentes os procedimentos romanescos, e lá, são palpáveis as técnicas de autenticação do discurso. Um velho aristotélico como eu não deixaria de investir muito na verossimilhança. Ou seja, trataria de fazer um bom mythos com o material (ou experiência pessoal) mais estapafúrdio que tivesse. Sempre ensinei aos pretendentes a escritores: O importante não é o que se conta, mas o como se conta. A maior mentira precisa parecer verdade, precisa convencer o leitor. Como disse Santo Agostinho, na anedota que tantas vezes contei em aula, "pensei que fosse mais verossímel que vacas voassem do que noviços mentissem". Por isso, aos poucos, com a malícia de velho contador de histórias, irei saciando a curiosidade do meu leitor, tecendo a minha trama, compondo a minha história pessoal, e deixando, de propósito, algumas pontas do novelo soltas, para serem arrematadas mais para o final. Escrever um livro de memórias que não possa ser lido como um bom romance me parece um duplo fracasso. Se eu não for capaz de fazer o que ensinei, falharei nos dois sentidos, como professor e como escritor.


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