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Às vezes, diante do espelho,
ao ajeitar a barba, conformado já com os dentes amarelos, com as pequenas
manchas escuras que começam a surgir-me no rosto e nas mãos, indago ao outro,
que me fita na superfície fria do mercúrio, como fui capaz de evitar as minas,
os alçapões e as armadilhas que me esperavam. A genética e a história,
acomodadas em seu determinismo cego, queriam que eu fosse um provinciano
irrealizado e ressentido, vendedor de agrotóxicos, apontador de jogo do bicho,
bancário ou fotógrafo de batizados e casamentos nos grotões às margens do rio
Uruguai, mas eu me recusei a cumprir os augúrios das forças biológicas e
sociais. Mais adiante, contarei como fugi do labirinto, sem oráculo e sem fios
mágicos, depois de ouvir a notícia da morte de Erico Veríssimo, no meu velho
rádio Continental.
No princípio, quando decidi
escrever as minhas memórias, uns 10 anos atrás, eu contava o episódio de EQM
como se fosse um sonho. Eu tinha uma carreira de homem público (tinha sido
Coordenador do Livro e Literatura de Porto Alegre, depois Secretário Municipal
de Cultura, depois Sub-Secretário Estadual de Cultura), eu tinha uma carreira
de professor e escritor, e senti temor e vergonha de declarar que minha alma
(consciência) tinha saído do corpo e encontrado um amigo falecido dezenas de
anos antes da minha própria morte. Diante da minha condição de ficcionista eu sabia que não seria
levado a sério. Era melhor dizer que tinha sido um sonho. Assim, transformei o
episódio no tema de um romance, Dia de
matar porco, que foi publicado, mas que não gerou mais do que indiferença.
E o que faço agora vai gerar dores de cabeça aos teóricos de literatura, no
futuro, quando eles cruzarem as duas
histórias. Qual é a verdadeira? O roman à
clef ou as memórias romanceadas? Aqui, são evidentes os procedimentos
romanescos, e lá, são palpáveis as técnicas de autenticação do discurso. Um
velho aristotélico como eu não deixaria de investir muito na verossimilhança. Ou seja, trataria de fazer um bom mythos com o material (ou experiência pessoal) mais estapafúrdio que tivesse. Sempre ensinei aos
pretendentes a escritores: O importante não é o que se conta, mas o como se
conta. A maior mentira precisa parecer verdade, precisa convencer o leitor. Como disse Santo Agostinho, na anedota que tantas vezes contei em aula, "pensei que fosse mais verossímel que vacas voassem do que noviços mentissem". Por isso, aos poucos, com a malícia de velho contador de histórias, irei
saciando a curiosidade do meu leitor, tecendo a minha trama, compondo a minha
história pessoal, e deixando, de propósito, algumas pontas do novelo soltas,
para serem arrematadas mais para o final. Escrever um livro de memórias que não
possa ser lido como um bom romance me parece um duplo fracasso. Se eu não for capaz
de fazer o que ensinei, falharei nos dois sentidos, como professor e como
escritor.
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