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Durante a década de 30, em
conseqüência da modernização que começava a produzir-se no Brasil, houve um
surto migratório em direção ao Alto Uruguai, a noroeste do Rio Grande do Sul.
Numa dessas levas, meus antepassados, que viviam no município de Cachoeira do
Sul, viajaram em carroções, como no Velho Oeste, e subiram a serra em direção
ao Planalto Médio Central, onde se instalaram. Em Aventura no Rio Escuro contei
às crianças parte dessa história, ficcionalmente. Meio século depois, eu faria
o caminho inverso dos meus avôs, retornando à planície, migrante também. Sem
uma cachorra como a Baleia, de Graciliano Ramos, mas com uma filha, que hoje é
a filha mais velha, Maíra, casada com Armando Júnior, e que já me deram dois lindos
netos, o Bernardo e a Ana Bella.
Segundo Bernardo Augusto Kiefer,
meu avô paterno, que encheu os meus primeiros anos de vida com as maravilhosas aventuras
de Till Eulenspiegel, e com a sabedoria caseira dos antigos Almanaques,
a viagem teria durado dezesseis dias, em carroções lentos e desconfortáveis.
Contei fragmentos dessa saga em A face do abismo, meu romance
faulkneriano. Esse livro é cheio de maneirismos lingüísticos, cortes narrativos
abruptos, vazados em linguagem torrencial, de difícil leitura. Por muitos anos,
acalentei a esperança, e a ilusão, de um dia reescrevê-lo. Eu não sabia que eu
tinha uma morte “no meio do caminho”, que no “meio do caminho” eu tinha uma
morte. E a experiência da morte, eu soube depois de ser reanimado, modifica
tudo. Durante 49 anos eu quis ser escritor, eu quis ter o meu nome gravado nos
livros de história da literatura. Passava semanas fechado dentro de um quarto,
a inventar narrativas, sem contato com as pessoas. Hoje, passo semanas sentado
no meu pomar, brincando com a filha mais nova, a Anna, que tem um ano e meio, ou
conversando com meus amigos e alunos, ou olhando as estrelas na companhia da
filha do meio, a Sofia, ou tomando chimarrão com a Marta, essa extraordinária
companheira que Hashem colocou em meu caminho. Agora, não quero ser nada a não
ser alguém capaz de compartilhar com os outros tudo que aprendeu num outro
mundo, muito além desse mundinho em que ter o nome nos livros de história da
literatura tem alguma importância.
Confesso que em meu fracassado
projeto de ser escritor faltou-me o fôlego e a paciência descritiva de um John
Steinbeck, escritor que tanto admirei na juventude. Fôlego talvez eu também o
tivesse. Não tive, na verdade, condições econômicas para ser aquilo que eu
queria ter sido ou o que poderia ter sido no campo da arte narrativa. Dinheiro
compra tempo, e tempo nunca tive. Minha predileção pela história curta, o conto
e a novela, não foi tão inocente, e nem tão esquemática, como eu próprio, às
vezes, fiz crer, em entrevistas, artigos e palestras. Um conto, pela sua
própria natureza, pode ser escrito num feriado prolongado. Ou numa tarde de
domingo. Embora gestado longamente. E burilado ainda mais demoradamente. Mas
não um romance. E muito menos um romance épico. De Machado de Assis, também confesso
agora, eu só invejo o emprego de funcionário público. Mesmo hoje, enquanto
ainda luto para comer o pão no suor do meu rosto, só me lancei à perigosa
aventura de escrever memórias porque aproveitei as forçadas férias da epidemia
de gripe que, em agosto de 2009, assustou aqueles que já esqueceram que a luta
pela sobrevivência do ser humano sempre foi contra os vírus e as bactérias. A
maior parte de nossa massa corporal é composta de bactérias, numa estranha,
inquietante e hilária simbiose. Sem esses seletivos e selecionadores
microorganismos nós não estaríamos aqui. Mais de 10 anos depois que a epidemia
de gripe me levou a iniciar a escritura de Suor
no rosto, eu retomo o projeto, por culpa de um amigo paulista, chamado Carlos
Mendes, que é um dos responsáveis pelo programa Afinal, o que somos nós? Depois de uma longa entrevista que dei ao seu
Canal de Youtube, retornei para Porto Alegre com a vontade de voltar a escrever
minhas memórias. Assim, voltemos ao passado e aos seus fios invisíveis, que são
incapazes de nos salvar do que nos espera no fundo do túnel, com ou sem
pandemias. Não, não nos salvam, mas nos recarregam com a energia que brota do
ônfalos.
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