segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Suor no Rosto (1)




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Durante a década de 30, em conseqüência da modernização que começava a produzir-se no Brasil, houve um surto migratório em direção ao Alto Uruguai, a noroeste do Rio Grande do Sul. Numa dessas levas, meus antepassados, que viviam no município de Cachoeira do Sul, viajaram em carroções, como no Velho Oeste, e subiram a serra em direção ao Planalto Médio Central, onde se instalaram. Em Aventura no Rio Escuro contei às crianças parte dessa história, ficcionalmente. Meio século depois, eu faria o caminho inverso dos meus avôs, retornando à planície, migrante também. Sem uma cachorra como a Baleia, de Graciliano Ramos, mas com uma filha, que hoje é a filha mais velha, Maíra, casada com Armando Júnior, e que já me deram dois lindos netos, o Bernardo e a Ana Bella.



Segundo Bernardo Augusto Kiefer, meu avô paterno, que encheu os meus primeiros anos de vida com as maravilhosas aventuras de Till Eulenspiegel, e com a sabedoria caseira dos antigos Almanaques, a viagem teria durado dezesseis dias, em carroções lentos e desconfortáveis. Contei fragmentos dessa saga em A face do abismo, meu romance faulkneriano. Esse livro é cheio de maneirismos lingüísticos, cortes narrativos abruptos, vazados em linguagem torrencial, de difícil leitura. Por muitos anos, acalentei a esperança, e a ilusão, de um dia reescrevê-lo. Eu não sabia que eu tinha uma morte “no meio do caminho”, que no “meio do caminho” eu tinha uma morte. E a experiência da morte, eu soube depois de ser reanimado, modifica tudo. Durante 49 anos eu quis ser escritor, eu quis ter o meu nome gravado nos livros de história da literatura. Passava semanas fechado dentro de um quarto, a inventar narrativas, sem contato com as pessoas. Hoje, passo semanas sentado no meu pomar, brincando com a filha mais nova, a Anna, que tem um ano e meio, ou conversando com meus amigos e alunos, ou olhando as estrelas na companhia da filha do meio, a Sofia, ou tomando chimarrão com a Marta, essa extraordinária companheira que Hashem colocou em meu caminho. Agora, não quero ser nada a não ser alguém capaz de compartilhar com os outros tudo que aprendeu num outro mundo, muito além desse mundinho em que ter o nome nos livros de história da literatura tem alguma importância.



Confesso que em meu fracassado projeto de ser escritor faltou-me o fôlego e a paciência descritiva de um John Steinbeck, escritor que tanto admirei na juventude. Fôlego talvez eu também o tivesse. Não tive, na verdade, condições econômicas para ser aquilo que eu queria ter sido ou o que poderia ter sido no campo da arte narrativa. Dinheiro compra tempo, e tempo nunca tive. Minha predileção pela história curta, o conto e a novela, não foi tão inocente, e nem tão esquemática, como eu próprio, às vezes, fiz crer, em entrevistas, artigos e palestras. Um conto, pela sua própria natureza, pode ser escrito num feriado prolongado. Ou numa tarde de domingo. Embora gestado longamente. E burilado ainda mais demoradamente. Mas não um romance. E muito menos um romance épico. De Machado de Assis, também confesso agora, eu só invejo o emprego de funcionário público. Mesmo hoje, enquanto ainda luto para comer o pão no suor do meu rosto, só me lancei à perigosa aventura de escrever memórias porque aproveitei as forçadas férias da epidemia de gripe que, em agosto de 2009, assustou aqueles que já esqueceram que a luta pela sobrevivência do ser humano sempre foi contra os vírus e as bactérias. A maior parte de nossa massa corporal é composta de bactérias, numa estranha, inquietante e hilária simbiose. Sem esses seletivos e selecionadores microorganismos nós não estaríamos aqui. Mais de 10 anos depois que a epidemia de gripe me levou a iniciar a escritura de Suor no rosto, eu retomo o projeto, por culpa de um amigo paulista, chamado Carlos Mendes, que é um dos responsáveis pelo programa Afinal, o que somos nós? Depois de uma longa entrevista que dei ao seu Canal de Youtube, retornei para Porto Alegre com a vontade de voltar a escrever minhas memórias. Assim, voltemos ao passado e aos seus fios invisíveis, que são incapazes de nos salvar do que nos espera no fundo do túnel, com ou sem pandemias. Não, não nos salvam, mas nos recarregam com a energia que brota do ônfalos.

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