terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Suor no rosto (2)



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As terras vermelhas do Planalto Médio Central eram férteis, bem servidas de rios e afluentes, e muito baratas. A região, escassamente povoada, precisava de braços para o trabalho de desmatamento e de ampliação das lavouras. Um novo país estava nascendo, a reboque da revolução getulista, e ele precisaria de novos e mais variados produtos agrícolas. Na época, não se pensava em crescimento sustentado, equilíbrio ecológico, vacum rastreado. Na adolescência, no Colégio Estadual Cardeal Pacelli, tive um professor que falava muito em ecologia, em destruição dos recursos naturais e nos perigos da superpopulação mundial. A cidade inteira dizia que ele era louco. Sempre, na história humana, os visionários e os profetas são vistos pelas massas ignorantes como doentes mentais, desequilibrados ou poetas. Ridicularizados em vida, depois recebem homenagens póstumas, especialmente quando seus vaticínios se cumprem. Os antigos, com sua Sabedoria derivada da Mesopotâmia, onde apareceram os primeiros cabalistas, usavam a mesma palavra para designar os loucos e os poetas: vate. Daí, vaticínio, vidência, adivinhação. Não se sabe se o vocábulo tem origem latina, grega ou celta.    



Para os migrantes era um imperativo de sobrevivência colocar abaixo as milenares canafístulas e canjaranas e plantar em seu lugar mandioca, feijão e arroz do seco. A soja, que transformaria completamente a estrutura fundiária da região, viria bem mais tarde, na década de 50. Não tenho saudade de madelaines, porque nunca as tive, mas o cheiro de pão de milho assado no forno à lenha desperta-me também memórias involuntárias. Outro odor de que tenho saudade é o de madeira recém-cortada por motosserras ou serras-fitas, por mais agressivo e politicamente incorreto que seja admitir isso. Eu brincava de cowboy numa serraria, com meus colegas de escola. Os troncos de canafístula, compridos, majestosos, e as tábuas de guajuvira, louro ou cedro já cortadas, serviam-nos de abrigo contra as bolinhas de mamona, jogadas pelos estilingues que chamávamos de bodoques. Apesar da violência do folguedo, que nossos pais certamente não conheciam, nunca tivemos um olho vazado. Havia uma regra, que era respeitada por todos os meninos: jamais atirar na cabeça. O infortúnio é um erro de cálculo, sempre repito, plagiando não sei quem. A frase é muito boa para ser minha, preciso admitir. O infortúnio é um erro de cálculo e também uma questão de acaso. Centenas de bolinhas de mamona voando para lá e para cá a velocidades espantosas e nenhum acidente grave, exceto alguns vermelhões. Talvez por isso eu tenha sido tão obsessivo com a segurança da Sofia, a filha do meio. E seja obsessivo agora com a segurança da Anna, a filha mais nova. Crianças só caem e se machucam quando os adultos se descuidam. Quando nos hospedamos em hotéis e pousadas, ou na casa de familiares e amigos, vasculho fios desencapados, escadas perigosas, móveis com arestas pontiagudas, janelas sem proteção. O mundo, já me convenci, foi planejado para os adultos. A sobrevivência das crianças é um milagre. Eu próprio me surpreendo de ter chegado aos sessenta anos praticamente ileso, com exceção de algumas escoriações, fraturas e cicatrizes.



Na serraria, entre restolhos de madeira, troncos e serragem, muitas vezes encontrei os escorpiões negros que reapareceriam quarenta anos depois em meu romance O escorpião da sexta-feira. Naquele tempo, e naquela região, as madeireiras eram comuns. Quando a matéria-prima escasseou, migraram para o norte do Paraná. E depois para a Amazônia, que está sendo devastada a uma velocidade impressionante. O que a natureza levou centenas de milhares de anos para construir, nós destruiremos em um século. Por isso, é preciso reflorestar o Rio Grande do Sul com urgência, para que as serrarias voltem. Que me perdoem os líricos, os ingênuos e os ignorantes, mas a ecologia só produzirá efeitos reais quando for um bom negócio.



Meu pai, quando criança, sentava-se sobre toras de cedro com uma canequinha de alumínio e molhava o longo serrote manual para que o calor não emperrasse a lâmina que meu avô e meu tio Olavo puxavam o dia inteiro. Para complementar os rendimentos da olaria, eles produziam dormentes para os trilhos da linha de trem de Santa Rosa, em construção. Trinta anos depois, para economizar as passagens de ônibus, eu percorria a pé o trajeto entre Cruzeiro, onde morava na casa de meu tio Silvano, e Santa Rosa, onde eu trabalhava no Jornal O Noroeste, exatamente sobre aqueles trilhos, assoviando, e sonhando em viver de literatura. O sonho, como os trens, perdeu-se na distância. Hoje, com várias dezenas de livros publicados, e traduzido em outros países, vendo infinitamente menos do que vendia na década de 80 do século passado. Ainda assovio, e para sobreviver ensinei a muitos a arte de escrever. Hoje, não ensino mais Escrita Criativa, nem Literatura. Dedico-me agora a mais antiga ciência da humanidade, a Chochmá Nistará, a Sabedoria Secreta, que os gregos aprenderam com os babilônios. Hoje eu entendo o Aristóteles, que recomendava que não se ensinasse a Sabedoria para alunos eticamente despreparados. Ou, como diz o Talmude, para alguns alunos é melhor que fiquem sentados e que não façam nada. Referiam-se, os antigos sábios, aos Segredos e não aos Sabores. Os Sabores são para todos; os Segredos, para alguns. Quando Julius Robert Oppenheimer, o físico responsável pelo Projeto Manhattan, enviou o telegrama a Albert Einstein comunicando que tinham acabado de “libertar Saturno”, falava de Segredos. Imagino que ele, judeu e conhecedor da Sabedoria de seu povo, tenha pensado na Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal ao contemplar o cogumelo formado no deserto de Los Alamos, no Novo México, quando a primeira bomba atômica foi detonada.



Da primitiva cobertura vegetal, que era quase completa no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, e que a natureza levou tanto tempo para produzir, pouco restou. Hoje, as terras altas estão transformadas num infinito tapete verde e rasteiro de soja. Com a fauna e a flora devastadas, a região, agora, sofre com as estiagens, os temporais violentos e as invasões de colonos sem-terra.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Suor no Rosto (1)




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Durante a década de 30, em conseqüência da modernização que começava a produzir-se no Brasil, houve um surto migratório em direção ao Alto Uruguai, a noroeste do Rio Grande do Sul. Numa dessas levas, meus antepassados, que viviam no município de Cachoeira do Sul, viajaram em carroções, como no Velho Oeste, e subiram a serra em direção ao Planalto Médio Central, onde se instalaram. Em Aventura no Rio Escuro contei às crianças parte dessa história, ficcionalmente. Meio século depois, eu faria o caminho inverso dos meus avôs, retornando à planície, migrante também. Sem uma cachorra como a Baleia, de Graciliano Ramos, mas com uma filha, que hoje é a filha mais velha, Maíra, casada com Armando Júnior, e que já me deram dois lindos netos, o Bernardo e a Ana Bella.



Segundo Bernardo Augusto Kiefer, meu avô paterno, que encheu os meus primeiros anos de vida com as maravilhosas aventuras de Till Eulenspiegel, e com a sabedoria caseira dos antigos Almanaques, a viagem teria durado dezesseis dias, em carroções lentos e desconfortáveis. Contei fragmentos dessa saga em A face do abismo, meu romance faulkneriano. Esse livro é cheio de maneirismos lingüísticos, cortes narrativos abruptos, vazados em linguagem torrencial, de difícil leitura. Por muitos anos, acalentei a esperança, e a ilusão, de um dia reescrevê-lo. Eu não sabia que eu tinha uma morte “no meio do caminho”, que no “meio do caminho” eu tinha uma morte. E a experiência da morte, eu soube depois de ser reanimado, modifica tudo. Durante 49 anos eu quis ser escritor, eu quis ter o meu nome gravado nos livros de história da literatura. Passava semanas fechado dentro de um quarto, a inventar narrativas, sem contato com as pessoas. Hoje, passo semanas sentado no meu pomar, brincando com a filha mais nova, a Anna, que tem um ano e meio, ou conversando com meus amigos e alunos, ou olhando as estrelas na companhia da filha do meio, a Sofia, ou tomando chimarrão com a Marta, essa extraordinária companheira que Hashem colocou em meu caminho. Agora, não quero ser nada a não ser alguém capaz de compartilhar com os outros tudo que aprendeu num outro mundo, muito além desse mundinho em que ter o nome nos livros de história da literatura tem alguma importância.



Confesso que em meu fracassado projeto de ser escritor faltou-me o fôlego e a paciência descritiva de um John Steinbeck, escritor que tanto admirei na juventude. Fôlego talvez eu também o tivesse. Não tive, na verdade, condições econômicas para ser aquilo que eu queria ter sido ou o que poderia ter sido no campo da arte narrativa. Dinheiro compra tempo, e tempo nunca tive. Minha predileção pela história curta, o conto e a novela, não foi tão inocente, e nem tão esquemática, como eu próprio, às vezes, fiz crer, em entrevistas, artigos e palestras. Um conto, pela sua própria natureza, pode ser escrito num feriado prolongado. Ou numa tarde de domingo. Embora gestado longamente. E burilado ainda mais demoradamente. Mas não um romance. E muito menos um romance épico. De Machado de Assis, também confesso agora, eu só invejo o emprego de funcionário público. Mesmo hoje, enquanto ainda luto para comer o pão no suor do meu rosto, só me lancei à perigosa aventura de escrever memórias porque aproveitei as forçadas férias da epidemia de gripe que, em agosto de 2009, assustou aqueles que já esqueceram que a luta pela sobrevivência do ser humano sempre foi contra os vírus e as bactérias. A maior parte de nossa massa corporal é composta de bactérias, numa estranha, inquietante e hilária simbiose. Sem esses seletivos e selecionadores microorganismos nós não estaríamos aqui. Mais de 10 anos depois que a epidemia de gripe me levou a iniciar a escritura de Suor no rosto, eu retomo o projeto, por culpa de um amigo paulista, chamado Carlos Mendes, que é um dos responsáveis pelo programa Afinal, o que somos nós? Depois de uma longa entrevista que dei ao seu Canal de Youtube, retornei para Porto Alegre com a vontade de voltar a escrever minhas memórias. Assim, voltemos ao passado e aos seus fios invisíveis, que são incapazes de nos salvar do que nos espera no fundo do túnel, com ou sem pandemias. Não, não nos salvam, mas nos recarregam com a energia que brota do ônfalos.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Hillulot (11)


Rabi Yair Chayim Bacharach

Rabi alemão e maior posek (Juiz Halachico) do século XVII

1º de Tevet | 29/12/2019

Nascido em Lipník nad Bečvou, República Checa, em 1638
Falecido em Moravia, República Checa, em 1702

O Rabi Yair Chayim Bacharach viveu primeiramente em Koblenz, na Alemanha, mas passou a maior parte da sua vida nas cidades de Worms e Mainz, também na Alemanha. Sua avó, Eva Bacharach era neta do Maharal de Praga, enquanto seu pai, Moses Samson Bacharach, e seu avô foram rabinos em Worms.

É o autor de Chavos Yair ("Vilas de Yair"), publicado em Frankfurt em 1699, uma compilação de responsas cujo título veio a ser o nome pelo qual é conhecido, além de ser uma referência à sua avó, Chava, e também a um local mencionado em Números 32:41 e em outros livros da Bíblia judaica. Também escreveu Mekor Chayim, obra que pretendia ser o principal comentário ao Sulchan Aruch, mas que foi recolhida por Bacharach quando o mesmo descobriu que outros comentários haviam surgido, especialmente o Taz e Magen Avraham. Mesmo assim, ainda é considerado como principal fonte de referência acerca dos minhagim (costumes) da época e região. Bacharach também escreveu uma crítica à obra do Rabi Aharon Teomim-Frankel, Mateh Aharon, na qual condena a metodologia do pilpul, popular entre os rabinos da época. Além de sua erudição haláchica, também dominava todas as ciências, música, história e escrevia poesia, e compilou uma enciclopédia de 46 volumes sobre vários assuntos. 

Em 1689, a comunidade de Worms foi dizimada pelos franceses durante a Guerra dos Nove Anos, sendo reconstruída pouco a pouco. Em 1699, Bacharach foi indicado como rabino da cidade e, seguindo o legado do seu pai e avô, serviu como tal por três anos, até sua morte em 1702. Seu epitáfio inicia com as seguintes palavras: "Um terrível e grave horror recai sobre nós quando a luz do nosso mestre (Rabbeinu) se oculta...". Em 1982, sua principal obra, Mekor Chayim, é finalmente publicada por Machon Yerushalayim.
Considerações
Bacharach era cauteloso quanto suas opiniões sobre a Kabbalah. Ainda que considerasse a Kabbalah algo muito sagrado, sustentava que a mesma também trazia um grande risco teológico e que por isso deveria ser estudada apenas pelos mais devotos e apenas sob orientação de um professor. Na sua responsa, Bacharach conta que alguém lhe pediu para explicar as fórmulas cabalísticas comumente impressas nos livros de orações. Bacharach se recusou a responder, mas quando a pessoa insistiu, limitou-se a dizer que desconhecia a explicação. Ainda que desencorajasse o estudo aprofundado da Kabbalah, estimulava a leitura simples do Zohar.

Que o mérito do tzadik Rabi Yair Chayim Bacharach proteja a todos nós, Amém.

Shamati (127)

    127. A diferença entre o núcleo central, a essência e a abundância agregada ( Su cot Inter 4, Tav - Shin - Guimel , 30 de setembro d...