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As terras vermelhas do
Planalto Médio Central eram férteis, bem servidas de rios e afluentes, e muito
baratas. A região, escassamente povoada, precisava de braços para o trabalho de
desmatamento e de ampliação das lavouras. Um novo país estava nascendo, a reboque
da revolução getulista, e ele precisaria de novos e mais variados produtos
agrícolas. Na época, não se pensava em crescimento sustentado, equilíbrio
ecológico, vacum rastreado. Na adolescência, no Colégio Estadual Cardeal Pacelli,
tive um professor que falava muito em ecologia, em destruição dos recursos
naturais e nos perigos da superpopulação mundial. A cidade inteira dizia que
ele era louco. Sempre, na história humana, os visionários e os profetas são
vistos pelas massas ignorantes como doentes mentais, desequilibrados ou poetas. Ridicularizados em vida, depois recebem
homenagens póstumas, especialmente quando seus vaticínios se cumprem. Os
antigos, com sua Sabedoria derivada
da Mesopotâmia, onde apareceram os primeiros cabalistas, usavam a mesma palavra
para designar os loucos e os poetas: vate.
Daí, vaticínio, vidência, adivinhação. Não se sabe se o vocábulo tem origem
latina, grega ou celta.
Para os migrantes era um
imperativo de sobrevivência colocar abaixo as milenares canafístulas e
canjaranas e plantar em seu lugar mandioca, feijão e arroz do seco. A soja, que
transformaria completamente a estrutura fundiária da região, viria bem mais
tarde, na década de 50. Não tenho saudade de madelaines, porque nunca as
tive, mas o cheiro de pão de milho assado no forno à lenha desperta-me também memórias
involuntárias. Outro odor de que tenho saudade é o de madeira recém-cortada por
motosserras ou serras-fitas, por mais agressivo e politicamente incorreto que
seja admitir isso. Eu brincava de cowboy numa
serraria, com meus colegas de escola. Os troncos de canafístula, compridos,
majestosos, e as tábuas de guajuvira, louro ou cedro já cortadas, serviam-nos
de abrigo contra as bolinhas de mamona, jogadas pelos estilingues que
chamávamos de bodoques. Apesar da
violência do folguedo, que nossos pais certamente não conheciam, nunca tivemos
um olho vazado. Havia uma regra, que era respeitada por todos os meninos:
jamais atirar na cabeça. O infortúnio é um erro de cálculo, sempre repito,
plagiando não sei quem. A frase é muito boa para ser minha, preciso admitir. O
infortúnio é um erro de cálculo e também uma questão de acaso. Centenas de
bolinhas de mamona voando para lá e para cá a velocidades espantosas e nenhum acidente
grave, exceto alguns vermelhões. Talvez por isso eu tenha sido tão obsessivo
com a segurança da Sofia, a filha do meio. E seja obsessivo agora com a segurança
da Anna, a filha mais nova. Crianças só caem e se machucam quando os adultos se
descuidam. Quando nos hospedamos em hotéis e pousadas, ou na casa de familiares
e amigos, vasculho fios desencapados, escadas perigosas, móveis com arestas
pontiagudas, janelas sem proteção. O mundo, já me convenci, foi planejado para
os adultos. A sobrevivência das crianças é um milagre. Eu próprio me surpreendo
de ter chegado aos sessenta anos praticamente ileso, com exceção de algumas
escoriações, fraturas e cicatrizes.
Na serraria, entre restolhos
de madeira, troncos e serragem, muitas vezes encontrei os escorpiões negros que
reapareceriam quarenta anos depois em meu romance O escorpião da sexta-feira.
Naquele tempo, e naquela região, as madeireiras eram comuns. Quando a
matéria-prima escasseou, migraram para o norte do Paraná. E depois para a
Amazônia, que está sendo devastada a uma velocidade impressionante. O que a
natureza levou centenas de milhares de anos para construir, nós destruiremos em
um século. Por isso, é preciso reflorestar o Rio Grande do Sul com urgência, para
que as serrarias voltem. Que me perdoem os líricos, os ingênuos e os
ignorantes, mas a ecologia só produzirá efeitos reais quando for um bom
negócio.
Meu pai, quando criança,
sentava-se sobre toras de cedro com uma canequinha de alumínio e molhava o
longo serrote manual para que o calor não emperrasse a lâmina que meu avô e meu
tio Olavo puxavam o dia inteiro. Para complementar os rendimentos da olaria,
eles produziam dormentes para os trilhos da linha de trem de Santa Rosa, em
construção. Trinta anos depois, para economizar as passagens de ônibus, eu
percorria a pé o trajeto entre Cruzeiro, onde morava na casa de meu tio
Silvano, e Santa Rosa, onde eu trabalhava no Jornal O Noroeste, exatamente sobre aqueles trilhos, assoviando, e
sonhando em viver de literatura. O sonho, como os trens, perdeu-se na
distância. Hoje, com várias dezenas de livros publicados, e traduzido em outros
países, vendo infinitamente menos do que vendia na década de 80 do século
passado. Ainda assovio, e para sobreviver ensinei a muitos a arte de escrever.
Hoje, não ensino mais Escrita Criativa, nem Literatura. Dedico-me agora a mais
antiga ciência da humanidade, a Chochmá
Nistará, a Sabedoria Secreta, que os gregos aprenderam com os babilônios.
Hoje eu entendo o Aristóteles, que recomendava que não se ensinasse a Sabedoria
para alunos eticamente despreparados. Ou, como diz o Talmude, para alguns
alunos é melhor que fiquem sentados e que não façam nada. Referiam-se, os
antigos sábios, aos Segredos e não
aos Sabores. Os Sabores são para todos; os Segredos,
para alguns. Quando Julius Robert Oppenheimer, o físico responsável pelo Projeto Manhattan, enviou o telegrama a
Albert Einstein comunicando que tinham acabado de “libertar Saturno”, falava de
Segredos. Imagino que ele, judeu e
conhecedor da Sabedoria de seu povo, tenha pensado na Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal ao contemplar o cogumelo
formado no deserto de Los Alamos, no Novo México, quando a primeira bomba
atômica foi detonada.
Da primitiva cobertura
vegetal, que era quase completa no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, e
que a natureza levou tanto tempo para produzir, pouco restou. Hoje, as
terras altas estão transformadas num infinito tapete verde e rasteiro de soja.
Com a fauna e a flora devastadas, a região, agora, sofre com as estiagens, os
temporais violentos e as invasões de colonos sem-terra.